Água, calor e plantas:
Rio Canaticu, Floresta Amazônica, Brasil
Anos atrás, embarquei em uma jornada solitária para um dos muitos corações da Floresta Amazônica, vivendo por 30 dias no Rio Canaticu, no Arquipélago do Marajó, na Amazônia. Durante a estadia, fui hospedado pelas famílias calorosas e acolhedoras da Comunidade Sagrada Família. Meu propósito para essa viagem era completamente indefinido, mas eu sabia que haveria muito a aprender. Mal sabia eu que essa experiência mudaria profundamente minha vida.
Hoje, como estudante de doutorado em Engenharia Ambiental, olho de novo para essa experiência em busca de ensinamentos para um dos principais problemas atuais do nosso mundo: o calor extremo. As comunidades das áreas tropicais já lidam com o calor há séculos e desenvolveram seus conhecimentos vernaculares e moldados pelo tempo para se adaptarem:
"O papel do conhecimento na adaptação intuitiva ao calor excessivo é fundamental. Esse conhecimento pode ser visto como uma infraestrutura intangível que orienta as pessoas a se protegerem efetivamente durante as ondas de calor. [...] O conhecimento vernacular, que inclui o conhecimento étnico, local, intergeracional e indígena, é essencial para fornecer medidas comportamentais eficazes para resfriar o corpo e os espaços habitacionais. A perda desse capital intangível pode resultar na incapacidade de combater o calor excessivo" (Mazzone et al., 2023, Nature Sustainability).
A vida cotidiana das comunidades tropicais pode trazer lições valiosas para a adaptação das cidades às mudanças climáticas. Na região amazônica, isso é especialmente verdade. Lá, os níveis de umidade do ar são altos, o que dificulta nossa capacidade de lidar com o calor, e também são frequentes os eventos de chuvas intensas, que serão cada vez mais comuns nas nossas cidades por conta das mudanças climáticas.
Essa experiência foi um lembrete de que há muitas outras dimensões da existência, e não há necessidade de reinventar a roda. Em vez disso, podemos aprender com aqueles que já se adaptaram a alguns dos nossos obstáculos atuais enquanto vivem em harmonia com o meio ambiente. Por meio deste ensaio, compartilho as lições que aprendi com o povo Marajoara sobre sua rotina e relação com a água, com as plantas e com o calor.
Água
Onde a vida no rio Canaticu se desenrola, o tempo passa mais devagar e os espaços são enormes. Os extensos rios amazônicos não são apenas rios, mas parte de uma intrincada hierarquia: dos menores igarapés (pequenos afluentes) aos mais poderosos rios e aos sinuosos furos (canais), esses cursos d'água definem não apenas a paisagem, mas um modo de vida. Como os rios são vastos, muitas vezes exigem que as pessoas ofereçam abrigo a estranhos, pois as distâncias podem levar dias de viagem.
O início da viagem: pegando o barco de Belém do Pará a Curralinho, a foz do Rio Canaticu.
Tempestades tropicais, muitas vezes chamadas de "trevoadas" devido aos estrondos que ecoam pela floresta tropical, pontuam os dias. Essas tempestades servem tanto como um lembrete do poder bruto da natureza quanto como uma oportunidade de aproveitar as chuvas que dão vida.
“Trevoada”, chuva tropical com ventos fortes e trovões.
Mas os rios de lá são mais do que apenas maravilhas naturais; eles são linhas de vida, fornecendo alimentos e atendendo às necessidades básicas. Eles servem como o principal meio de transporte, permitindo o acesso a atividades essenciais, como comércio e educação. Nessas águas, as crianças encontram não apenas um parque de diversões, mas também um espaço para exploração. Atividades diárias, como lavar roupa e tomar banho, também são realizadas nesses rios.
Brincando na água: crianças e adultos.
Gustavo e Carla brincando com bonecos na bacia com água do Rio Canaticu.
Erick brincando na água dentro da bacia quando as marés do Rio Canaticu estão baixas.
Kelvin aprendendo a nadar com uma bóia de Miriti (ou Buriti, Mauritia flexuosa).
Ranieri preparando e instalando os matapis, armadilhas para captura de camarão.
Ranieri e Ravel usando a malhadeira, rede para pesca.
Devido às grandes distâncias que caracterizam a paisagem, o acesso ao comércio tradicional pode ser um desafio. Como resultado, vendedores itinerantes navegam pelos canais dos rios com uma seleção de produtos para oferecer às comunidades. No entanto, algumas das comunidades estabeleceram suas próprias pequenas lojas. Essa combinação de vendas itinerantes e lojas locais ressalta a determinação da comunidade em atender às suas necessidades e, ao mesmo tempo, preservar seu modo de vida.
Vendedores itinerantes vendendo pão, gelo, comida e açaí.
Loja da família Firmino: Seu Benedito, Dona Helena, Jeová e Josele, com Rossinhe à frente na foto.
Loja de Edir e Lidia na Comunidade Sagrada Família.
Escolas na região do Rio Canaticu e o barco escolar.
No entanto, é importante reconhecer que os rios também serviram como instalações sanitárias essenciais, uma prática que agora está mudando graças aos projetos de saneamento básico em andamento na região. Essas iniciativas transformadoras refletem o respeito que a comunidade tem pelo meio ambiente, pois se adapta aos desafios modernos sem perder de vista seus valores tradicionais.
As águas do Rio Canaticu são usadas para tarefas diárias: lavar as roupas, cozinhar, escovar os dentes, tomar banho e ir ao banheiro.
Dona Iranete lavando as roupas com águas do Rio Canaticu.
Roupas estendidas na parte da casa que recebe mais Sol e vento: a frente, na direção do rio.
O saneamento básico na comunidade fora recentemente instalado através do projeto Sanear Amazônia, proporcionando o tratamento local de água e esgoto.
Os banheiros antigos, que apenas despejavam o esgoto na terra.
Os novos banheiros com fossa séptica.
Trabalho comunitário para peneirar a areia para os filtros.
A areia também chega de barco.
As plantas desempenham um papel fundamental na formação das vidas e dos meios de subsistência das comunidades de Canaticu. Essas plantas também são uma fonte vital de sustento e renda para as famílias que vivem nesse lugar.
Tradicionalmente, o látex era a força vital da economia local, colhido das seringueiras nas florestas. No entanto, o açaí assumiu o papel central como a principal fonte de renda das famílias. Elas coletam frutos de açaí em suas próprias terras ou, com a devida autorização, em territórios vizinhos.
Em um espírito de força coletiva, as famílias se uniram e formaram a cooperativa Sementes do Marajó. Essa cooperativa garante que os preços sejam regulados de forma justa e que as comunidades se beneficiem diretamente de seu trabalho, evitando a necessidade de atravessadores.
As famílias do Canaticu não estão sozinhas em sua jornada. Elas contam com o apoio do CNS - Centro Nacional das Populações Extrativistas, uma organização que defende o legado e as lutas de Chico Mendes. Edel Moraes, natural do Rio Boa Esperança, ou Rio Pagão, um afluente do Canaticu, desempenhou um papel fundamental na região, primeiro como presidenta da organização e agora como membro do Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas, trazendo vozes do Canaticu para a tomada de decisões nacionais.
Plantas
O açaí: processo de coleta e transporte no paneiro com Edir.
Edir coletando um cacho de açaí usando o terçado (faca) e a peconha (laço feito de corda, sacos de entulho ou fibra vegetal e usado como suporte para os pés). O coletor de açaí é chamado de peconheiro já que usa da peconha para escalar a palmeira de açaí.
Silvana limpando o açaí (Erick assistindo) e usando a batedeira, máquina específica para produzir o creme de açaí a partir das frutas.
Em meio a essa rica tapeçaria de plantas, a mandioca ocupa seu lugar como componente essencial da cultura culinária local. O processo de secagem da farinha de mandioca acontece em grandes paneiros de cobre, onde as tradições são passadas de geração em geração.
Parte do processo de fazer a farinha de mandioca: Aguinaldo usando o tacho de cobre.
Acima de tudo está a majestosa Samaúma, a rainha da floresta. Essa árvore colossal é guardiã e símbolo do meio ambiente, alcançando alturas que se elevam acima do dossel da floresta.
Anderson e a Samaúma, a rainha da floresta, e suas flores secas caídas. Quando eu fui ali tirar esta foto da árvore, estes botões de flores secas caíam nas folhas abaixo da Samaúma, criando um som de chuva ao redor daquela árvore enorme, apesar de não estar chovendo água.
Heat
As altas temperaturas locais e a alta umidade relativa do ar criam um ambiente em que o conforto térmico muitas vezes pode chegar níveis de estresse ao calor. No entanto, as comunidades ribeirinhas desenvolveram adaptações engenhosas para lidar com o calor implacável. Por exemplo, ao abraçar o nascer do Sol matinal, as pessoas usam as horas mais frescas para realizar suas tarefas diárias. Essa abordagem consciente do gerenciamento do tempo não apenas garante a produtividade, mas também minimiza a exposição ao calor escaldante do meio-dia.
O senso de comunidade é outro pilar da resiliência contra o Sol implacável. As pessoas se reúnem para apoiar os mais vulneráveis ao calor, oferecendo ajuda e fomentando um espírito de união que constitui uma parte essencial de sua adaptação.
Essas adaptações não se limitam às rotinas diárias, mas se estendem às próprias estruturas que moldam suas vidas. Os barcos geralmente são equipados com telhados para se protegerem da luz solar intensa. Na água, onde o Sol é mais intenso, a sombra de um teto é um refúgio muito necessário para o calor.
Rossinhe em sua oficina, ele é especialista na construção de barcos de madeira e recentemente também em barcos de alumínio.
Quando se usam os barcos sem cobertura, os guarda-chuvas são uma opção para proteger do Sol tropical intenso.
Braço de Seu Lolico na parede do barco mostrando quanto Sol sua pele já sentiu.
Erick aprendendo a remar o casco enquanto seus pais e irmã assistem.
Os postos de gasolina flutuantes.
Anderson remando o casco em frente às aningas (Montrichardia linifera).
O ambiente construído também reflete suas respostas engenhosas ao calor. Elevados sobre "palafitas", essas fundações semelhantes a pilares acima do solo, os edifícios evitam os extremos de temperatura da terra, ficando mais próximos das amplitudes térmicas mais baixas da água. Essa separação do solo aumenta a circulação de ar, criando um microclima mais confortável. A escolha dos materiais é igualmente estratégica, com o uso de madeira e materiais de alto albedo e baixa absorção de calor na construção dos edifícios. Essas adaptações não são apenas funcionais; elas são um testemunho da harmonia com o mundo natural, onde cada aspecto da existência está interligado à necessidade de lidar com os elementos.
Casas nas beiras dos rios ao redor da bacia do Rio Canaticu.
Tijolos são produzidos com argila retirada dos arredores na olaria local.
A olaria vista a partir do rio.
A maioria das casas são feitas de madeira, incluindo suas fundações, mas algumas têm técnicas mistas com alvenaria ou são totalmente feitas com tijolos.
Os chãos e as paredes de madeira sempre têm algumas frestas que as tornam respiráveis. O chão normalmente é fresco e confortável, o que o torna um lugar atraente para a soneca da tarde ou para assistir à televisão.
As casas normalmente também têm não só uma cozinha interna, mas também uma cozinha externa nos fundos, com maior circulação de ar. Nas fotos: Silvana e Gustavo.
Construindo o trapiche: a conexão entre a casa e o rio com fundações em palafita.
Sou profundamente agradecido aos amigos da Comunidade Sagrada Família que me receberam em suas casas com tanta hospitalidade. Aqui estão algumas das pessoas com quem mais convivi ao longo de quase um mês na comunidade, mas conheci muitos outros amigos que não consegui fotografar um retrato e portanto não estão aqui. A todos vocês, que consegui fotografar ou não, muito obrigado! Espero voltar mais vezes.
O adeus: noite no Rio Canaticu.
Astrofotografia da comunidade Sagrada Família. Rio Canaticu e a Via Láctea.
Seu João no pôr do sol. Todos os fins de tarde sentávamos juntos no alpendre e conversávamos sobre o dia.
Pessoas da comunidade Sagrada Família sentando no fim de tarde para assistir ao pôr da Lua e conversar.
A rede onde eu dormi todas as noites com a mosquiteira. Lá fora, a Lua.
Edilson no telhado do barco assistindo o nascer do Sol enquanto íamos visitar o vidente Seu Luiz Pinheiro.